O paradigma da incerteza, o que a pandemia nos ensinou?
Em tempos de pandemia, percebemos algumas coisas que ficaram muito expostas por conta de posicionamentos que entes não daríamos tanta importância. O mundo encontra-se dividido entre grupos políticos e ideológicos antagônicos que buscam justificar seus posicionamentos acusando-se mutuamente. O combate ao maldito vírus e o enfrentamento às conseqüências da pandemia levantaram uma questão interessante, e até então quase impensável, que é a validade da ciência como a conhecemos e aprendemos nos bancos escolares.
Com o iluminismo, passamos a encarar o mundo como algo sistêmico e mecânico e o paradigma deixou de ser o religioso e passou a ser o científico. Esse novo paradigma está estabelecido no princípio de que tudo possui uma mecânica, que basta compreender como as coisas funcionam para entendê-la por completo. Pensemos em uma máquina, à partir do momento que em consigo desmontá-la e ver suas peças, posso compreender o papel de cada uma delas e como interagem, dessa forma, compreendo seu funcionamento. Essa revolução cientifica mudou toda a forma de pensar o universo, a ponto de produzir uma total inversão de valores em prol da verdade científica. Esse paradigma secular predomina ainda hoje, contudo, assim como ocorreu lá no final da idade média, um novo paradigma se apresenta atualmente e pode, em breve, se tornar a nova forma de definirmos o que é verdade ou não!
Esse conflito entre diferentes formas de definir a verdade é constante, pois como diz Thomaz Kuhn:
“A ciência é uma arena de conflitos entre visões de mundo, onde a visão vigente ou paradigma vigente é sempre pressionado pelas novas visões e paradigmas.”
A nova visão ou paradigma que se aproxima tem como fundamento a incerteza. O compêndio de leis imutáveis que poderia explicar tudo passa a ter outra roupagem, pois essas leis acabam mudando por conta da instabilidade geral, onde tudo muda a todo tempo e o que hoje é assim, amanhã deixa de ser. Isso se revela em todas as relações, seja para definir uma política pública, seja para desenvolvimento de um novo remédio ou nova vacina. Nem tudo é como deveria ser de acordo com o paradigma reinante. Há também o fenômeno da auto-organização, em que a sociedade acaba se adaptando a realidade e toma medidas para se adequar a ela de forma espontânea, sem a necessidade de interferência externa, uma espécie de caos que se organiza sozinho e de diferentes formas em lugares diferentes.
Essa nova visão é plenamente compatível com os novos modelos de gestão onde nem sempre o que se busca é a perfeição, mas a melhoria contínua e a revolução total quando necessária. A natureza age assim, aperfeiçoando as espécies, buscando adaptá-las cada vez melhor ao ambiente e reproduzindo o que dá certo e eliminando o que não funciona, evitando criar seres perfeitos, ao passo que permite a evolução, sem que haja a necessidade de extinção, pois essa é obra de agentes externos. Em resumo, seria um constante teste de hipóteses em que o que presta sobrevive ao que é dispensável ou inadequado.
Na gestão eficaz, o desafio é o estabelecimento de processos ágeis, que apresentem resultados consistentes, mas sempre considerando as mudanças no caminho. A gestão de projetos, baseada no paradigma científico predominante, pressupõe em caminho desde a concepção da idéia até a entrega do produto, sem considerar as incertezas e mudanças imprevisíveis no caminho. Essas mudanças são imprevisíveis porque não sabemos o que vai mudar, por outro lado, pode-se ter certeza que vão ocorrer. A conhecida lei de Murphy já nos alerta para a “certeza da incerteza” quando afirma que algo que possa dar errado vai dar errado, e dessa forma, projetar algo detalhadamente até o final, acreditando no poder da previsão já não nos parece algo tão viável assim.
Lidar com essa complexidade gerada por esse espírito de incertezas vai se tornando uma característica cada vez mais valiosa quando entendemos que o mundo é assim, confuso, incerto e altamente dinâmico. Gerenciar equipes complexas com interesses diferentes sobre um mesmo resultado será cada vez mais comum, ainda mais quando se está avançando tanto em mecanismos tecnológicos que culminam com o trabalho remoto. As equipes muitas vezes nem interagem fisicamente, estão cada membro em um local, ligados apenas virtualmente pela internet, limitando esses fluxos comunicacionais provocando o que já mencionamos como sendo uma auto-organização, ou seja, independente do que cada um tem como interesse no projeto, essa complexidade caótica acaba convergindo para o resultado final.
Parece complicado, mas não é tão fora de propósito, pois as startups estão aí, um bando de jovens assumindo riscos e se entendendo no confuso mundo da internet. Pensemos em um empreendedor que quer se lançar no mundo digital, ele acaba vendo o que acontece e se adapta as diversas plataformas de conteúdo, se relaciona com seus concorrentes não mais de forma beligerante, mas colaborativa e o mercado virtual redefiniu esses conceitos de propaganda, concorrência, valor, enfim, aquilo que a ciência da administração definiu, o caos redefinirá.
Tá, e a pandemia, onde entra nisso? A pandemia mostrou que o paradigma da ciência predominante pode ser conduzido por interesses, justamente por não prever essas incertezas presentes na sociedade e no mundo. A validação de medidas preventivas, de remédios e até de vacinas é questionada o tempo todo dentro do próprio meio científico, justamente por não haver um consenso real sobre o que é efetivamente verdade. Uma doença nova provocou uma verdadeira revolução social, hábitos e práticas consolidadas são abandonadas, novas formas de encarar o conceito de autoridade e a explicitação de posições questionadoras diante do paradigma científico tradicional, tudo baseado nas diferenças ideológicas e sociais.
Não dá mais para achar que é possível entender o mundo como algo decifrável, que basta dissecar e conhecer suas partes para definir como funciona, que é possível estabelecer um compêndio de leis universais que explicariam tudo, pois o que reina é a incerteza, a mudança ou, como dizem alguns mais radicais, o “caos”!
Dessa forma, pode-se dizer que a pandemia abriu caminho para uma nova ciência, a ciência da incerteza, que tem na mudança o seu principal motivador e que existe uma tendência a auto-organização tanto na natureza quanto nas relações sociais, o que talvez ajude a explicar o enfraquecimento das instituições e o fortalecimento dos modelos de gestão ágeis, eficazes e dinâmicos, que admitem essa nova realidade.
Se isso é bom ou ruim, somente o tempo vai nos mostrar!
Jailson Aurelio Franzen